05/04/2006

Lembrança

Quis-te morta.
Mas queria ser eu, com as minhas mãos, a matar-te.
Assombravas-me à noite, como o papão a uma criança, entrando sem licença nos meus sonhos, virando-os, inteiramente, para ti.
Reviravas os meus dias e permanecias, sem perdão, a olhar-me dentro da minha própria cabeça, a agarrar-me com as tuas mãos o meu corpo frágil, fazendo-me redimir.
Quis matar-te, mas não queria. Queria querer matar-te, mas não conseguia querer. Querer e querer querer são duas espécies diferentes de intentar.
Dei-te comprimidos a mais. Não resultou. Tu sempre aguentaste bem as drogas. Ou, se calhar, fui eu que não pus a quantidade necessária para poderes sucumbir.
Apeçonhei a tua cerveja com gotas do meu sangue envenenado pela tua ausência, mas tu sempre aguentaste bem a bebida.
Já angustiado, esfaqueei as tuas costas, rasguei a tua pele, os teus músculos até escoriarem os teus ossos. A isto não poderias resistir.
Mas tu continuavas a assombrar-me com o teu olhar dentro do meu, com o movimento do teu corpo seco na minha cabeça.
Não te consegui matar. Não te quis matar, porque, se o quisesse empenhadamente, consegui-lo-ia.
Tu sempre aguentaste bem uma facada nas costas e o abandono.

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